Isabel Zambujal e a literatura (entrevista)

A escritora Isabel Zambujal aceitou responder a uma série de perguntas sobre as suas atividades profissionais e sobre a atualização do Auto da Barca do Inferno, de Gil Vicente. A entrevista que a seguir se apresenta foi realizada por três alunas da turma de 10º ano (KL, JS e CA).





Entrevista a Isabel Zambujal

SOBRE A ESCRITORA

1-       Foi para si difícil entrar no mundo da literatura como mulher?
Entrei no mundo da literatura, através de contos infanto- juvenis, há muitas mulheres escritoras nesta área, talvez seja por isso que não encontrei nenhum tipo de obstáculo.

        2 -  Por que razão entrou no mundo da literatura tendo já um trabalho na área da publicidade?
Foi a publicidade que me encaminhou para esse novo mundo. Um dia, como copywriter, redactora publicitária, pediram-me para escrever uns pequenos livros para crianças para uma promoção para a multinacional Nestlé. Depois deste trabalho muitas pessoas me incentivaram. E por que não experimentar? – pensei eu.

3-       O facto de ser filha de um pai escritor influenciou-a ou ajudou-a a entrar neste universo literário
O meu pai não me ajudou a abrir portas, pois é sempre muito rigoroso com o que é publicado e ainda não tinha confiança em mim como escritora. Por outro lado, sei que só o facto de ter o nome dele me facilitou alguns contactos, mas também me obrigou a dar mais provas de ter (ou não!) talento.

4-       Como leitora, gosta dos livros do seu pai?
Sem dúvida que sim, porque possuem uma personalidade própria, são criativos e têm sempre humor, mesmo quando a mensagem é séria.



5-       De que forma faria publicidade para os livros de Mário Zambujal junto dos leitores do ensino secundário?
O slogan poderia ser: Livros sérios que te fazem rir.

6-       A publicidade e a literatura não são mundos completamente diferentes? Por que razão não escolheu trabalhar apenas num deles? Se fosse obrigada a deixar um desses trabalhos, qual seria?
Ambos são mundos da escrita e da criatividade. Eu não escolhi, as oportunidades foram aparecendo e eu agarrei-as com unhas e dentes. Na publicidade já sou uma criativa “velhota”, nos livros sou uma escritora ainda jovem. Parece que o tempo me vai empurrando mais para os livros.

7-       Pensa continuar a sua carreira de escritora? Não é difícil ter duas profissões?

Tenho uma profissão e um hobby, só com muito trabalho, método e dedicação vou conseguindo manter os dois activos.

8-       Para que faixa etária de escritores prefere escrever?
Cada livro é um desafio, seja qual for a faixa etária. É sempre tudo muito entusiasmante.

       9 -  Quando é que começou a escrever?
              Desde os 23 anos que escrevo todos os dias como copywriter. Por volta dos 35 anos, lancei os meus 
              primeiro livros, aliás comecei logo com uma colecção: “Os Saltinhos”.

10-        Quando escreve, como lhe chega a inspiração? É algo espontâneo ou reflete muito antes de escrever?
É algo muito espontâneo, mas que está sempre relacionado com o trabalho. Pablo Picasso, que foi um dos homens mais criativos e produtivos de todos os tempos, dizia “Espero que a inspiração me encontre a trabalhar”. Isto quer dizer que não esperava pela inspiração para começar a criar. E este método deu bastante resultado, não acham?

SOBRE A OBRA
1-       Por que razão decidiu atualizar o texto de Gil Vicente?
      A ideia foi da editora Cristina Ovídio, do Clube do Autor. Ela conhece bem a minha personalidade e a minha escrita e achou que eu poderia ser a pessoa certa para adaptar o tom crítico e humorístico de Gil Vicente para os dias de hoje. Parece que não a desiludi.
2-       Pensa fazer a atualização de outras obras da literatura?
      Não, apetece-me mais abraçar outro tipo de desafios, projectos diferentes, onde eu possa surpreender-me a mim própria.
3-        O que é que pretendeu com esta atualização da peça vicentina? Continuar a criticar os pontos fracos da sociedade portuguesa ou chamar a atenção para a repetição dos erros ao longo dos tempos? O ser humano quinhentista é igual ao ser humano do século XXI?
     Pretendi respeitar ao máximo a mensagem de Gil Vicente para chamar a atenção que infelizmente o humano quinhentista é igual ao humano do século XXI. A tecnologia teve uma evolução vertiginosa em todas as áreas, mas o nosso carácter pouco evoluiu.
4-       Qual das críticas feitas na sua obra lhe parece mais importante e que gostaria que a sociedade corrigisse?
      As críticas feitas no Auto do Cruzeiro do Inferno são semelhantes às feitas no Auto da Barca do Inferno. Penso que de todos os defeitos o que mais me irrita é a hipocrisia. O que mais me assusta é a inveja, traz muita maldade.
5-       A cena do Fidalgo denuncia a nobreza como tendo a característica de cometer o adultério. Pensa que este facto é uma característica deste grupo social? Não lhe parece que o adultério acontece, hoje em dia, em todos os estratos sociais?
      Claro que acontece em todas as classes sociais. Era mais fácil se os defeitos e as virtudes estivessem divididos
      por grupos sociais, económicos ou etários.
6-       Porque razão, na cena do Onzeneiro, decidiu fazer com que ele fosse um homem submetido à mulher? Sentiu essa submissão na cena vicentina?
      Foi apenas uma forma de enriquecer a personagem e mostrar que também há mulheres sequiosas de poder.
7-       Porque fez o casal ir para Las Vegas? Não podiam ter ido para as noites algarvias do jogo e da diversão noturna?
     A diversidade e a riqueza de pormenores fazem as histórias mais interessantes e atraentes. Las Vegas não é apenas o lugar onde há um casino, é um símbolo mundial do jogo. Este tipo de informações fazem parte da cultura geral e há muitos jovens que ainda desconhecem estas pequenas curiosidades.
8-       Na cena do Parvo, apresentou-o como um “deficiente” por causa da consanguinidade dos pais. Por que justificou o seu estado de parvo como deficiência genética e não como simples carater da personagem?
      Mais uma vez para enriquecer a história e a verdade é que em muitas terras portuguesas a consanguinidade era um problema muito comum. Os leitores mais jovens não devem conhecer esta realidade.


9-         Na cena do Frade, atualizou a cena seguindo de perto a peça de Gil Vicente. Não lhe ocorreu explorar nessa atualização os recentes acontecimentos de pedofilia ligados a alguns membros da igreja? Não lhe parece que este aspeto merecia ser focado? Nada do comportamento do Frade de Gil Vicente me levou para a pedofilia e pareceu-me muito forçado tocar nesse tema. Fui criticando os comportamentos com leveza e humor, palavras que para mim são difíceis de ligar à pedofilia.
   
10     Por que razão decidiu que o Sapateiro fosse homossexual? Fê-lo porque pensa que a profissão de sapateiro é feminina ou há outro motivo que a tenha levado a atribuir uma homossexualidade a esse personagem?
     No mundo da moda há bastante homossexualidade assumida por isso senti que tornar o João Antão homossexual com uma relação feliz podia ajudar a abrir mentalidades, o que nunca é demais.
  
11-     Na cena de Brízida Vaz, deixou a personagem vicentina ser uma mulher. Por que não a converteu em homem, já que nos dias de hoje o proxenetismo é visto essencialmente como uma atividade masculina dirigida por homens?
      Não mudei o sexo das personagens de Gil Vicente, tentei ser o mais rigorosa possível com as características de cada uma. 

12-     Na mesma cena, há alguma razão especial para ter dado a Brízida Vaz a profissão de psicóloga? 
        Foi apenas uma brincadeira para enfatizar o facto de nos dias de hoje a terapia ser uma prática comum. 
 
13-     Não lhe parece que a cena do Judeu, na atualidade, pode ser percebida como veiculando uma certa discriminação religiosa para o público e para o leitor? Essa discriminação já estava presente na obra original, mais uma vez eu só tentei adaptar os comportamentos das personagens de Gil Vicente para a actualidade. 

14-     Na cena do Procurador, a personagem de Ricardo aproveita-se dos divórcios litigiosos para ganhar bem a vida. Como vê o facto de algumas profissões ganharem dinheiro à custa do mal dos outros? Sente que é prática comum no mundo da Justiça no Portugal de hoje?
     A ganância faz as pessoas maldosas e cruéis, isso não mudou ao longo dos tempos. Infelizmente, a palavra corrupção é muito usada em Portugal. 

15-     A cena do enforcado refere-se a vários elementos dos nossos tempos como a Coca-Cola, o livro O Segredo, ou até James Dean... como escolheu esses elementos de entre muitos outros que caracterizam a época em que vivemos?
      Na realidade podiam ter sido muitos outros, lembrei-me destes porque todos eles são ícones mundiais de uma determinada época. 

16-     Tendo em conta a cena final de Gil Vicente onde os 4 cruzados se salvam, apesar de terem ido para guerra, parece-lhe que respeitou a intenção de Gil Vicente ao escolher 4 bombeiros que merecem o paraíso por terem salvo pessoas do fogo? Na sua atualização não há guerra (de índole religiosa) como em Gil Vicente.
      Em Portugal, não fazia sentido uma guerra religiosa. Por isso, escolhi os bombeiros, pondo-os também a cavalo e salvando vidas. Não são cruzados, mas são soldados da paz. 

17-     Parece-lhe que existem nos tempos que correm personagens tão pecadoras como as que surgem na obra de Gil Vicente e na sua? Não haverá exagero na crítica de Gil Vicente e na sua?
      Basta ler os jornais para perceber que o comportamento das minhas personagens é bastante brando em relação às atrocidades que se fazem hoje em dia (e que sempre se fizeram!). A crueldade do ser humano continua a ser indescritível. Lamentavelmente. 

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